A “volta ao mundo” em capoeira
Dentre as diversas facetas do jogo da capoeira, à volta ao mundo talvez seja uma das mais emblemáticas, pois articula a convergência do imaterial com o plano material, ou, para os mais céticos desportistas, simplesmente representa um momento de reoxigenação muscular para quebra da Adenosina Trifosfato (ATP). Assim, de qualquer forma, este momento do ritual poderá ser determinante nos processos estratégicos constitutivos dos pares na disputa em roda.
É importante considerar que a capoeira possui uma matriz eminentemente afrodescendente, desta forma, diversos elementos simbólicos ritualísticos são oriundos de uma determinada matriz de leitura da realidade, portanto, muitos aspectos similares são perceptíveis nas práticas culturais do negro em território brasileiro.
A volta ao mundo em capoeira é perceptível quando em determinado momento do jogo, os capoeiras que hora disputavam a peleja corporalmente, interrompem o processo e circulam em sentido anti-horário pela parte mais extrema da roda. Neste sentido, “capoeiristicamente falando”, isso ocorre por diversos motivos, tais como:
- Após um ataque perigoso e/ou forte, para acalmar quem atacou;
- Após um ataque perigoso e/ou forte, para evitar o revide imediato;
- Para acalmar o jogo;
- Para pensar estratégias;
- Para demonstrar conhecimento ritualístico;
- Para entrar em conexão com o plano espiritual em busca de proteção.
Mesmo constatando uma infinidade de motivações para a volta ao mundo em capoeira, todas possuem um eixo comum, que é o fato das possibilidades se articularem com uma noção subjetiva de reconstrução da realidade, como se houvesse uma alternativa de se voltar no tempo e refazer os fatos já ocorridos.
A perspectiva descrita acima, obviamente, é uma metáfora subjetiva, pois materialmente, apesar dos estudos sobre a relatividade de Albert Einstein, ainda não temos registros oficiais de indivíduos que conseguiram voltar no tempo fisicamente, contudo, na imaterialidade do pensamento afrodescendente, este exercício é realizado constantemente para reavaliarmos atitudes e procedimentos de vida.
Quando estudamos a pratica do candomblé podemos perceber uma forte identidade entre a volta ao mundo da capoeira e o Xirê, que é uma parte do ritual em que o orixá é reverenciado com danças, toques e cantigas, de forma a se criar uma ambiência imaterial que invoque os mesmos a descerem do Orun, palavra que na mitologia Yoruba simboliza o céu ou o mundo espiritual, paralelo ao Aiye, mundo físico. Assim, a ordem mais comum é a passagem do plano material para o espiritual, sendo necessário para inverter esta lógica, no Xirê,, a dança em sentido anti-horário, criando-se a metáfora de `inversão`, fazendo com que o caminho seja feito do plano espiritual para o material.
A vinda do plano espiritual representa um contato com nossa ancestralidade, sendo este capitalizado por um processo ritualístico, mediado por uma circularidade anti-horária, com cantigas e toques percussivos, como em capoeira. Assim, tanto na volta ao mundo como no Xirê, percebemos a metáfora de inversão de lógicas, perdedor – ganhador, Orun – Aiyè, tempo que retrocede, dentre outras. Desta forma, possivelmente não é fruto do acaso tal semelhança, pois a capoeira foi desenvolvida a partir de uma teia cultural eminentemente africana, tendo em sua edificação ritualística diversos entrelaces com o povo negro.
É importante ressaltar que o reconhecimento de elementos comuns com o candomblé não atribui ao capoeira um caráter religioso exclusivo, nem tão pouco vincula sua pratica cotidiana em roda, mas, sem dúvidas, reafirma uma identidade cultural ancestral que precisamos conhecer e reconhecer.
Por: Mestre Jean Pangolin
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