Capoeira e Suas Gravações Sonoras Históricas
Regional, São Bento Grande de Angola e Reco-Reco
O fenômeno da capoeiragem é algo fascinante. Enquanto a parte da musicalidade avança cavalarmente, com novas roupagens rítmicas e cantadas – nem a Capoeira Angola escapa– vamos deixando para trás muitos registros sonoros históricos inexplorados. Na região de Rio Claro (SP), os amigos Prof. Pelicano e Prof. Guerreiro (Luis Lima), ambos do Grupo Muzenza, iniciam uma importante conversa em torno de uma dessas preciosidades sonoras: a gravação de Lorenzo Dow Turner [1]: “Então, São Bento Grande de Angola faz parte da Regional ou não?”. Segundo matéria do Portal Capoeira do camarada, de autoria do camarada Teimosia [2], além de Lorenzo Dow Turner, Franklin Frazier também foi responsável pelas gravações. Os registros foram feitos por volta de 1940, quando, em tese, a Luta Regional Baiana já estava “formatada”. Abem da verdade, meu primeiro contato com esses registros foi em 2006, quando a Dra. Leticia Vidor e colaboradores organizaram um curso de Extensão Universitária “A Capoeira na Academia”. Foi um curso fantástico, onde semanalmente vários temas eram exaustivamente debatidos por mestres e simpatizantes da capoeiragem em geral. Participaram Mestres Kenura, Alcides, Eli Pimenta, Janja, Emilio Careca, Cm Cenorinha, o saudoso Mestre Ananias, Mestre Marrom de Taboão da Serra, além de diversos representantes da “academia”. Até o Brincante Antonio Nobrega nos brindou com uma excelente palestra teórico-prática sobre a manifestação cultural “Cavalo Marinho”, e sua rica musicalidade e gestualidade. Foi emocionante ver como representantes de nossa cultura e arte podem alavancar toda uma trajetória cultural. Sem exaurir a lista de participantes, tivemos uma excelente aula de musicalidade com Mestre Dinho Nascimento, o Berimbau Blues do Morro do Querosene, região do Butantã, São Paulo.
Pois bem, retornando ao tema central dessa crônica, as gravações de Lorenzo e Franklin trazem reflexões interessantes. Para começar, tal registro apresenta Mestre Bimba e sua charanga cantando a Capoeira Regional, mas também conta com a participação do Mestre Cabecinha do grupo Estrela Capoeira Angola. Talvez uma das primeiras vezes em que Angola e Regional compartilham – de forma harmoniosa – um mesmo palco nos tempos antigos. Tempos em que a Regional buscava se firmar como uma nova forma de se praticar a capoeira da Bahia. Quando digo da Bahia é porque considero que também aconteceram outras Capoeiras, como a Capoeira-Luta de Sinhosinho no Rio Antigo, a de Pernambuco, que acabou enveredando para o Frevo, a Tiririca de Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro, Pato Nagua em São Paulo, e outras que devemos tê-las perdido ao longo do tempo antes mesmo de ter a chance de conhece-las melhor.
Mestre Bimba e seu conjunto contribuiu com 4 faixas registradas no documentário e Mestre Cabecinha completou adicionando outras 6 contribuições, num total de 10 faixas.
A charanga da Regional sendo lapidada
Algo que também chamou a atenção é que, na época, as 4 faixas de Mestre Bimba utilizaram o São Bento Grande de Angola como base principal de ritmo. Inexplicavelmente, mais tarde – principalmente em seus 2 discos (1962 e 1969) – este toque deixaria de fazer parte do cardápio de Mestre Bimba, quando o mesmo introduz seus “7 toques da Regioná”. O amigo Prof. Verga (Ederson Renato), exímio pesquisador e responsável pelo grupo Capoeira Fundamento Ancestral de São Pedro (SP) avaliou minuciosamente os registros, e também concluiu que a base das gravações de M. Bimba foi SBG de Angola. Aliás, Prof. Verga tem algumas teorias interessantes sobre o que pode ter acontecido na época. Sugiro aos amigos da região convidá-lo para uma Surra de Arame, e ouvi-lo a respeito.
Sobre as gravações, a própria charanga de Mestre Bimba tem uma peculiaridade. Diferentemente do que hoje se vende como “Charanga da Capoeira Regional”, os instrumentos não se limitavam a 2 pandeiros e um berimbau. Tanto é que um dos instrumentos marcantes nas gravações é o reco-reco, que pode ser observado nitidamente em todas as faixas. Confirmando como a cultura é algo sempre em transformação, e no caso da “Regioná”, a mesma ainda estava em “formatação” por volta dos 1940.
Um outro ponto interessante é velocidade da charanga. Observando a faixa 1 da gravação é possível contar pelo menos 63 marcações completas do “tá tum tá” do pandeiro por minuto. Já nas gravações dos 2 discos de Mestre Bimba, os ritmos são bem mais cadenciados (por exemplo, o São Bento Grande do disco de 1969 tem 48 batidas de “tá tum tá” do pandeiro por minuto, sugerindo que ao longo do temo a Regional pode ter curiosamente “desacelerado”, adotando um ritmo mais manhoso e cadenciado. O que contraria muitos discursos de jovens mestres que advogam que a Regional veio para subir o ritmo porque a Angola era muito lenta.
Mas Mestre Bimba dá uma lição para não ser esquecida. Lá pela faixa 4, assim fala o narrador:
Ao som do Pandeiro, e do Berimbau e do Caxixi, cantará Bimba e seu conjunto, interpretando Angola, num momento em que relembra seus antepassados.
O mestre sabia muito bem suas origens, e não teria porque negar a importância da capoeira angola na base fundamental de sua luta regional baiana. Boa parte das próprias “quadras” e “corridos” entoados por Mestre Bimba nessa gravação, e mesmo suas “louvações”, se confunde com a musicalidade corrente da época – ver os registros de Mestre Cabecinha e do Mestre Juvenal.
O que chama ainda mais a atenção é que, se compararmos a musicalidade, cadência, e a forma de “louvação” que Bimba utiliza na gravação, Mestre Cabecinha vai na mesma toada, demonstrando o quanto aquelas capoeiras ainda não estavam tão dissociadas.
É hora de mergulharmos em águas mais profundas da história da capoeiragem. E é com alegria que vejo localmente os Capoeiras se reunindo para debater o universo de nossa arte, o que deve ser feito de forma tranquila e aberta, sem amarras e despidos de pré-conceitos (pré no sentido de conceito a priori). Vai daí que iniciativas como esta da Confraria Rioclarense de Capoeira pode ser um ótimo palco para tais conversas. Com certeza os Mestres da região de Rio Claro estão pensando nas principais temáticas a serem discutidos. E a musicalidade está, sem dúvidas, no cardápio. Parabéns Prof. Guerreiro, Mestre Cuica (Wilson Santana), Prof. Maxi, Prof. Milton Soares e demais “confrários” pela iniciativa. Todos ganharão muito com esta iniciativa.
Aproveitando o “adeus adeus” desta crônica, se preparem que logo o Prof. Pelicano, de Santa Gertrudes-SP, vai nos brindar com um novo livro. O tema não é outro senão possíveis origens indígenas de algumas vertentes de nossa arte. Com certeza, uma obra para ler na reguinha. E claro, tudo que é novo amplia debates e suscita novas discussões. Prof. Pelicano, estamos no aguardo do lançamento do livro. Tanto a Confraria Rioclarense, quanto o Vadiando Entre Amigos serão palcos para os primeiros eventos de lançamento do livro.
Sobre as gravações sonoras históricas, logo voltamos ao assunto. Tem muito tempero neste guisado para ser apreciado.
Referências:
[1] https://www.youtube.com/watch?v=65SGEOFow7I
[2] http://portalcapoeira.com/tag/lorenzo
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