Capoeira? Não existe. O capoeirista sim.
Professor Me. André Luis de Oliveira, professor de Educação Física pela Unesp – Rio Claro (1989), Especialista em Educação Física pela Unesp – Rio Claro (1990), Mestre em Educação pela PUC/SP (1993), Professor de Culturas Corporais de Lutas da Uninove (SP), Professor de Capoeira da Projete Liberdade Capoeira.
Resumo:
A capoeira normalmente é tratada como algo que tem existência em si, separada de seu sujeito, o capoeirista. Assim, esse trabalho resgata na literatura a origem do nome “capoeira”, seus significados possíveis e sua relação com o jogo-de-luta-dançada capoeira. Por fim, se quer recuperar a importância do professor ou mestre de capoeira: os que dão existência a ela.
Etimologia da palavra capoeira.
A palavra “capoeira”, esta longe de ser precisamente definida na sua origem. Isto porque há dois vocábulos, um de origem portuguesa e outro de origem do tupi, que podem ter originado capoeira para designar luta e como é usado em nosso país. Assim, o termo “capoeira” é registra a primeira vez no ano de 1712 (Bluteau in ARAUJO, 2004), e “usado para designar cesto, gaiolas ou locais determinados para se guardar aves” (ARAUJO, 2004, p.17). Para o vocábulo Tupi, que somente no século XIX aparece referenciado (op.cit. p.17), “capoeira” seria a junção de “ka’a”, mata e “PÛER”, passado, velho, superado, que já foi. Em tupi existe o tempo do substantivo. (NAVARRO, S/D). Assim, capoeira seria lugar que foi mata, mas já não é mais.
Também o termo tem sito usado para designar um tipo de ave: uru ou capoeira (Odontophorus capueira, Spix, 1825 in http://www.taxeus.com.br/especie/odontophorus-capueira).
A palavra “capoeira” para designar um indivíduo associado a um modo de conduta onde a luta física é usada, aparece somente em 1789, e esta registrado no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ — Tribunal da Relação — cód. 24, livro 10) e foi apontado por Cavalcanti (2004): O mulato Adão, escravo de Manoel Cardoso Fontes, comprado ainda moleque, tornou-se um tipo robusto, trabalhador e muito obediente ao seu senhor, servindo-lhe nas tarefas da casa. Manoel resolveu explorá-lo alugando-o a terceiros como servente de obras, carregador ou outro qualquer serviço braçal. Tornou-se Adão deste modo uma boa fonte de renda para seu senhor. Com o passar do tempo, o tímido escravo, que antes vivera sempre caseiro, tornou-se mais desenvolto, independente e começou a chegar tarde em casa, muito tempo depois do término do serviço. Manoel questionava-o: o que levava à mudança de conduta? As desculpas eram as mais inconsistentes para o senhor. Até ocorrer o que já o preocupava: Adão não mais voltou para casa. Certamente fugira para algum quilombo do subúrbio da cidade. Para sua surpresa, Manoel foi encontrar Adão por trás das grades da cadeia da Relação. Havia sido preso junto a outros desordeiros que praticavam a capoeira. Naquele dia ocorrera uma briga entre capoeiras e um deles fora morto. Crimes gravíssimos para as leis do reino: a prática da capoeiragem, ainda resultando em morte. No decorrer do processo constatou-se que Adão era inocente quanto ao assassinato, mas foi confirmada sua condição de capoeira, sendo, por isso, condenado a levar 500 “açoites” e a trabalhar “dois anos nas obras públicas”. Seu senhor, após Adão cumprir alguns meses de trabalho e ter sido castigado no pelourinho, solicitou ao rei, em nome da Paixão de Cristo, perdão do resto da pena argumentando ser um homem pobre e, portanto, muito dependente da renda que seu escravo lhe dava. Comprometeu-se a cuidar para que Adão não mais voltasse a conviver com os capoeiras, tornando-se um deles. Teve o pedido homologado pelo Tribunal em 25.04.1789.
Esta citação desmitifica alguns mitos em torna da capoeira:
- A referência mais antiga da luta capoeira é carioca, para decepção dos baianos;
- Capoeira, nas origens, está associada à contravenção e suas referências históricas mais antigas encontram-se em boletins de ocorrência, e não como prática lúdica entre escravos (jogo);
- Capoeira aparece em meio urbano, não em fazendas, senzalas ou quilombos;
- Capoeira é usada como luta de escravo contra escravo, de escravo contra policia quando são reprimidos ou entre maltas de capoeiras, e não como “mandinga de escravos em ânsia de liberdade” (Mestre Pastinha apud Zulu, 1995, p.6);
- Capoeira como luta só aparece referendada a partir do final do século XVIII (1789) e não com a vinda dos primeiros escravos (1539).
O que, neste momento, me parece mais importante a tudo isto, é a associação da prática ao praticante. “Capoeira”, a partir de um processo associativo entre etimologia da palavra + atitudes e ações dos indivíduos pertencentes a grupos marginalizados + manifestações corporais de caracterizadas por exercícios de agilidade e destreza corporal, segundo Araújo (2004, p. 49) poderemos ter:
- Muitos dos indivíduos considerados capoeiras eram malfeitores;
- Alguns dos indivíduos considerados capoeiras eram apenas fugitivos;
- Alguns dos indivíduos considerados capoeiras, logo malfeitores, eram praticantes da capoeiragem;
- Alguns dos indivíduos considerados capoeiras, logo fugitivos, eram praticantes da capoeiragem;
- Alguns dos indivíduos praticantes da capoeiragem, e considerados capoeiras, não eram malfeitores nem fugitivos.
A partir da análise semântica e histórica, Araújo (op.cit. p. 50) conclui que:
“Muitas das expressões (capoeira) que atentavam contra a ordem pública nem sempre foram realizadas por aqueles que praticavam e exerciam a luta/jogo de agilidade e destreza, e que a atribuição de culpa a eles era por demais perniciosa tanto para a manifestação referida como para os seus executores”.
Soares (1999) corrobora com essa associação de sujeito e prática ao falar de outro personagem. O “capoeiro”, escravo carregador dos grandes cestos (capoeira), assim como açougueiro, leiteiro e aguadeiro formariam os ofícios da escravaria urbana. (SOARES, 1999). Para Rios Filho (in SOARES, 1999 p.23) capoeira luta teria nascido das disputas da estiva destes “capoeiros”, nas horas de lazer, nos “simulacros de combate”, que pouco a pouco se tornaram hierarquias de habilidades, onde se duelava pela primazia no grupo. Dessas disputas de perna teria nascido o “jogo da capoeira” ou dança do escravo carregador da capoeira. Ou seja, nem todo capoeira era jogador de capoeira.
Vê-se assim que associar capoeira (luta) ao capoeira (sujeito contraventor) foi sempre uma constante, mesmo quando descabida. O artigo 402 do Decreto Lei número 847, de 11 de outubro de 1890 (capítulo XIII – Dos vadios e capoeiras) também não faz nenhuma distinção entre “exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem” e malfeitor, contraventor, homicida, assassino, fugitivo, ladrão. Todos eram capoeiras e considerados praticantes da capoeiragem (exercício de agilidade e destreza corporal) e punidos no rigor da lei. Araújo (2004, p.59) corrobora a isto afirmando que:
“Acreditando que as autoridades judiciais, ao identificarem uma prática corporal de caráter lúdico ou mesmo de luta e desconhecendo sua origem e denominação, por certo, vincularam-na diretamente aos indivíduos dos grupos marginais (capoeiras) que as realizavam, depreendendo-se daquela manifestação de agilidade e destreza corporal que se lhes apresentava como sendo uma luta/jogo de capoeiras, evidenciando-se preponderantemente, neste caso, o vocábulo designativo de tais personagens como determinante para a qualificação nominal da coisa.”
Corriqueiramente, associamos práticas e profissões a determinados indivíduos, ou seja, a prática ou ofício vai denominar o praticante ou profissional. Assim temos:
- Advogado, aquele que advoga, defende (alguém ou alguma causa) em juízo ou fora dele;
- Artesão, aquele que faz arte e técnica do trabalho manual não industrializado, artesanato,
- Estivador, trabalhador portuário que, recebendo a carga de um navio, a arruma devidamente no porão ou num compartimento, ou a descarrega de bordo, estiva;
- Jogador, aquele que tem por profissão jogar ou aquele que joga;
- Marceneiro, aquele que trabalha com marcenaria, artesão ou operário industrial que trabalha com madeira em tábua;
- Mecânico, aquele que monta, conserva e conserta máquinas e motores;
- Professor, aquele que professa uma crença, uma religião ou aquele que ensina, ministra aulas;
- Torneiro: aquele que trabalha com o torno.
No caso da capoeira (jogo/luta), não é o que ocorre. O sujeito CAPOEIRA vai nomear sua prática de jogo-de-luta-dançada – a capoeira, e não ao contrário. A expressão corporal capoeira foi denominada por indivíduos que receberam a mesma denominação. O Capoeira era um personagem que não tinham um meio de subsistência e domicílio certo, vivia em mocambos nas matas próximas (capoeiras) às vilas e cidades, logo um “capoeiro”, e que através do uso popular e de adaptações vocabulares popularizou-se e afirmou-se como sendo a luta/jogo do (indivíduo) capoeira, ou da capoeira, pois tal prática vinha destes espaços. Com o tempo passou-se a denominar exclusivamente como capoeira (ARAUJO, 2004, p.60).
O Capoeira: quem é ele hoje?
Como vimos, capoeira jogo/luta é uma prática típica brasileira associada a um personagem histórico (o Capoeira) visto e perseguido como contraventor, embora não o fosse sempre. Vimos também que o praticante dá nome a pratica e não ao contrário: o modo de vida do capoeira é capoeiragem; a luta criada pelo capoeira é a capoeira. Posto isto, vê-se que a capoeira jogo/luta está estritamente ligada a seu praticante: o capoeira, hoje chamado de capoeirista. Sozinha, ela não existe.
No Brasil, estima-se 6 milhões de praticantes (ATLAS DO ESPORTE NO BRASIL, 2014). Há uma certa unanimidade em gratidão a essa prática. Numa pesquisa simples e rápida, encontram-se dezenas de depoimentos e músicas aludidos a uma gratidão e ajuda da capoeira:
- Agradeço a capoeira do fundo do coração (http://www.realcapoeira.ru/capoeira/song/agradeco-a-capoeira-m-casquinha);
- Agradeço à capoeira, Por todo que me ensinou Sou de coração marcado, Por essa arte que o negro criou (https://es-la.facebook.com/permalink.php?story_fbid=141225046061135&id=124456147738025 visto em 16/nov/2014);
- Agradeço a Capoeira, Do fundo do meu coração, Pra vocês todos os presentes, Eu dedico essa canção (http://www.capoeira-music.net/all-capoeira-songs/all-capoeira-corridos-songs-m/mandei-cair-meu-sobrado/ visto em 16/nov/2014);
- Um dia a capoeira ela lhe ajudou, Tirou você da miséria lhe transformou; Você não sabe o valor que a capoeira, tem, Ela tem valor demais, Ê se segura rapaz; A Capoeira me ajudou. Ela me fez ser na vida. Hoje quem eu sou (http://capoeiralyrics.info/Songs/Details/2104 visto em 16/nov/2014); .
- Agradeço a Capoeira, Por tudo que me tornei, Hoje estou aqui rimando, Foi nela que me criei (http://www.ondeachocapoeira.com/ondeacho/noti_detal.php?id=585&pag=1&tipocat= visto em 16/nov/2014);
- Agradeço à capoeira porque ela me resgatou; Acho a capoeira um apoio de vida porque ela me tirou de muita coisa ruim http://www.vitoria.es.gov.br/noticias/noticia-9015 visto em 16/nov/2014);
- A capoeira me ajudou; A capoeira vai me curar (http://www.capoeira-music.net/all-capoeira-songs/all-capoeira-corridos-songs-m/mas-que-saudade/ visto em 16/nov/2014);
- Ela é quem me ensinou, É ela quem vive a me ensinar, Ela é quem me ajudou https://www.facebook.com/pages/M%C3%BAsicas-Da-Abad%C3%A1-Capoeira/543758379075509 visto em 16/nov/2014);
- Ela me ajudou não só no meu físico, mas também na parte de caráter, responsabilidade, disciplina (http://m.tvg.globo.com/novelas/malhacao/2012/por-tras-das-cameras/noticia/2013/04/rodrigo-simas-declara-sua-paixao-pela-capoeira-eu-ginguei-antes-de-andar.html visto em 16/nov/2014);
- “E foi a capoeira que me ajudou a levantar da cadeira de rodas” a capoeira vem trazendo reflexos na vida escolar e nos planos para o futuro (http://quiririmnews.com.br/seminario-gera-inclusao-social-na-cecap/#.VGk7FPnF9vA, visto em 16/nov/2014)
Será mesmo que se deve agradecer à capoeira? Será que a capoeira jogo/luta tem esse poder de, sozinha, fazer tanto pelas pessoas?
De tal maneira, muito se tem escrito sobre as contribuições da capoeira para a Educação em geral e a Educação Física em particular – FALCÃO, 1996; FREITAS, 1997, 2003, 2005, 2007; MENEZES, 2007; RADICCHI, 2013; REIS, 2001, 2006; REIS, 2011; RIBEIRO, 1992; SILVA, 1993; SILVA e HEINE, 2008. Mas como a capoeira jogo/luta faz isso dissociado de seu produtor, fazedor ou professor/mestre?
No momento em que se produz este texto, discute-se o projeto de lei destinado a reconhecer a prática da capoeira como profissão (PLC 31/2009). A visão predominante é de que regulamentação só será legítima se reconhecer a capoeira como atividade multidimensional – ao mesmo tempo luta, dança e arte – além de fator de socialização, criação de identidade e de transmissão de memória ancestral. Parece-nos tão relevante quanto esta legalização é a definição de quem será este profissional: qual sua formação mínima? Em quanto tempo? Qual sua escolaridade/capacitação? Quais instituições estarão autorizadas a capacitá-lo? Quem serão os capacitores destes profissionais?
Capoeira? Não existe. Capoeirista sim.
Referências Bibliográficas
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CAVALCANTI, Nireu O. Crônicas históricas do Rio colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/FAPERJ, 2004.
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FREITAS, Jorge L. Capoeira infantil: a arte de brincar com o próprio corpo. Curitiba: Ed. Gráfica Expoente, 1997.
_______________. Capoeira infantil: jogos e brincadeiras. Curitiba: Torre de Papel, 2003.
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MENEZES, Lilia B. Capoeira; benefícios psicofisiológicos. Niterói: La Salle, 2007.
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RIBEIRO, Antonio L. Capoeira: terapia. Brasília: Secretaria dos Desportos, 1992.
SILVA, Gladson de O. Capoeira: do engenho à universidade. São Paulo: O autor, 1993.
SILVA, Gladson de O. e HEINE, Vinícius. Capoeira: um instrumento psicomotor para a cidadania. São Paulo: Phorte, 2008.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano, A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial, 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999.
TÁXEUS, Listas de espécies. http://www.taxeus.com.br/especie/odontophorus-capueira, visto em 13 de novembro de 2014.
ZULU. Idiopráxis de Capoeira. Brasília: Editora do Autor, 1995.
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