Contemplações: A Violência e a Capoeira 1ª Parte
Vendo as rodas onde eu fui e vou, ouvindo os discursos de vários mestres, grupos e estilos que encontro, uma coisa me parece mais e mais clara: a relação entre violência e capoeira é bem ambígua.
Há golpes e quedas numa roda que são violentos, ao mesmo tempo que em outras rodas não são; há discursos que falam da não-violência, e lutam pela paz; existem tapas educados e comportamentos brutos. Se fala que um estilo de capoeira é mais violento que o outro; que hoje em dia a capoeira já não é mais tão violenta que já era (nos anos ‘80s e ‘90s), ou até mais violenta mas menos perigosa (o saudoso mestre João Pequeno), e que não deveria bater no aluno, porque aluno cresce (então pode bater no professor?).
Há mestres que dizem que capoeira é luta até a morte, e há outros que querem eliminar dela qualquer signo de violência. Há buscas de influências das outras artes marciais, e capoeiristas que querem se meter nas lutas de ringue. E há movimentos ‘pelo paz’, literalmente – como o ‘Ginga pela paz’ – e outros influenciados pelas teorias e práticas não violentas como a de Rosenberg.[1]
Capoeira é dito um jogo, e a gente diz que quando se torna briga, para de ser capoeira. Mas capoeira também é um arte marcial – talvez a arte marcial com a relação mais problemática à violência – então é luta também. E luta não tem violência não? Então, como é que é?
Para tentar entender, voltamos primeira para a história da nossa arte: A relação entre a capoeira e a violência na história sempre parece ser de ambiguidade. capoeira nasceu de uma situação violenta, que era a opressão e exploração do cativeiro. A gente conhece as histórias; capoeira é luta, ela precisava se adaptar ao contexto, até que no início de desenvolvimento dela, usava golpes simples mas violentos, como a cabeçada, o coice e a banda, fora das várias armas às vezes usadas também. Era uma coisa violenta mesma, que precisava ser, para sobreviver.
Isto não parou depois da abolição – a capoeira se encontrou sempre nos períodos e situações violentas: as maltas de Rio de Janeiro, as bandas no Recife, a guerra do Paraguai, a proibição da prática durante o Império, os valentões, e a própria marginalidade em que ela se desenvolveu e dentro ela sempre se movimentava, mesmo depois a divulgação dela fora das classes populares e a expansão pelo mundo.
Como um arte marcial, como luta pela liberdade, capoeira sempre teve uma ligação forte com a violência, será a violência do opressor, de estado ou da rua. E é por isso que os golpes dela primeiramente eram eficaz antes de ser bonito, e um capoeirista não era qualquer um: deveria poder lidar com a violência que ela(e)encontrava no percurso. Foi uma razão principal do porque o mestre Bimba decidiu desenvolver a luta regional Baiana; porque achava que a capoeira da sua época não podia mais enfrentar esta violência real, nem a competição das outras artes marciais estrangeiras que fizeram fama no Brasil na época.
Só que isto não é a história toda. Porque antes de fugir a senzala, de lutar com o opressor, o escravo também precisava viver e suportar a sua situação. Quer dizer que além de ser luta, a capoeira também é visto com uma forma de resistência cultural, uma expressão Afro-Brasileira que reforça a identidade e o espírito do Africano capturado, trazido para Brasil nas condições horríveis e destinado para fazer trabalhar forçado até o morte. Uma expressão cultural como a do candomblé e o samba. Expressões que ajudavam ele(a) a suportar essa condição e de não entregar a alma.
Uma resistência de alma, ou de espírito, não se faz com a violência; ela é uma resistência contra a violência física, muitas vezes por falta das outras medidas. É uma resistência do oprimido, do submetido. Então a estratégia deve ser diferente. É por isto que nesta interpretação – ou perspectiva – da capoeira, a violência é muitas vezes visto como algo alheia, algo de uma sociedade opressora que deveria se batalhar de outras formas. Algo que não deveria se copiar, para não incorporar o estado espiritual de opressor. Vem de lá a interpretação da capoeira como jogo, onde o lúdico virou um elemento muito mais importante. Porque a gargalhada desarma qualquer poder opressivo.
Os desenvolvimentos mais recentes de capoeira mostra uma flutuação entre essas duas interpretações: Quando a capoeira era mais violenta e marcial nos anos ’80 e ’90, nas últimas décadas vimos mais foco na perspectiva do jogo e o lúdico. Hoje em dia acho que podemos ver essas duas linhas de pensamento e interpretação nos vários estilos e tradições de capoeira. Sempre entrelaçadas; não há uma capoeira que é só lúdico, sem nenhum aspecto marcial, nem uma capoeira que é só de bater. Porque nos dois extremos costumamos dizer que ‘não é mais capoeira’.
Tudo bem. Mais então é isto? O estilo e a interpretação da capoeira determinam a relação com a violência dentro a capoeira? E um estilo é então quase nunca violento, e o outro quase sempre? Talvez é um pouco mais complicado que isto. Voltamos na próxima.
[1] Rosenberg, M.B. (2015) Non-Violent Communication: A language of life. Third Edition, Encinitas, PuddleDancer Press.
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