Antes de começar, gostaria de falar diretamente à você, leitor (pelo menos, espero que tenha alguns). A vida de um colunista é meio isolada: a gente começa cada vez de novo com um papel em branco, e confìa nossas palavras ao mundo digital sem ver ou escutar a reação do público. Será que eles entenderam o que eu queria dizer? O que eles pensaram sobre isso? Será que eles lêem mesmo?
Então, aqui gostaria de dizer que como colunista, eu adoro ter reações, positivas ou críticas sobre os temas, das colunas. Isto pode ser feito no site mesmo, onde o Portal Capoeira tem a possibilidade de reagir, mas também em mensagem privada, por exemplo no capofilosofo[a]gmail. Eu acho que é importante ter feedback, para manter contato com o mundo em que a gente escreve.
Esses últimos dois meses eu estive (e ainda estou) viajando pelo Brasil, por razões óbvias: a capoeira. Ao lado de rever amigos, conhecer novos lugares, pessoas, escolas e estilos de capoeira, essa viagem também faz parte de uma pesquisa empírica que estou fazendo para o meu doutorado, que se trata de teoria política, educação e capoeira.
Viajando pelas cidades tenho encontrando várias pessoas, capoeirista ou não, envolvidas nos movimentos negros, feministas, anti-sexistas ou pela paz; estou vendo como estes assuntos também estão sendo tratados em vários grupos de capoeira. Porque, a capoeira é uma reflexão da sociedade onde ela está, pois não? Andando por um país onde a presidenta legítima, foi impedida de terminar seu mandato devido à um processo definido por muitas pessoas como um golpe de estado. Onde o presidente atual se encontra numa situação de impunidade, construída pelo próprio parlamento, apesar de várias denúncias. Num país, que se desdobra a corrupção, onde uma nova lei de trabalho é instalada, diminuindo ainda mais os direitos e condições dos trabalhadores; um país que é o berço da capoeira. Me lembrei de uma frase que ouvi em várias formas, e vários lugares: que “a capoeira não é – ou tem – política.”
Deixa-me primeiro esclarecer a última contestação: Eu acho bastante incoerente. Alguma coisa que podemos demonstrar facilmente com a história de capoeira: talvez a gente não consiga definir exatamente o que é a capoeira, mas a gente sabe qual foi a situação em que ela nasceu. Vários historiadores e antropólogos já pesquisaram e escreveram sobre a história da capoeira, e muitos livros e textos, acadêmicos ou não, já foram escritos tratando o assunto. Foi uma situação de cativeiro, de banzo, de opressão e de violência. Nada novo aqui.
É por isso que vários mestres falam que a capoeira nasceu de uma ânsia de liberdade; liberdade dessa opressão, da escravidão, e da violência. Nesse aspecto, é talvez contestável ver a capoeira em si como um movimento político, igual um partido político ou até um movimento popular como o abolicionista. Mas acho, que devemos ver a capoeira como uma manifestação política em si. E não só no Brasil. Agora, para poder abordar isto melhor, é necessário primeiro explicar o que eu entendo pela palavra ‘política’.
O uso popular da palavra política normalmente é entendido em um desses dois sentidos: o primeiro é o sistema governamental de um país, estado ou cidade, o segundo as interações entre pessoas e/ou institutos que são motivados por algum interesse material ou ideológico: o que é chamado, às vezes, também de jogo de poder.
Mas, se vemos o conceito de política que pensadores políticos de hoje como Jacques Rancière ou Alain Badiou dão à palavra política, fica difícil entender essas definições ainda como verdadeiramente política. Caso, a gente pense que a palavra ‘política’ deveria ser conectada com um conceito de verdade.
Um pequeno problema aqui, é a língua portuguesa: onde a palavra ‘política’ é tanto substantivo, adjetivo ou advérbio. Quando, por exemplo, no Inglês há ‘politics’ e ‘the political’, para indicar duas coisas diferentes. ‘Politics’, para o uso da palavra ‘política’, a qual eu considero o processo de governar um país, estado ou cidade; e as interações motivadas pelos interesses pessoais ou institucionais que acontecem em nosso dia-dia.
‘The political’, que aqui traduzo como ‘o político’ por falta de outras palavras, não tem nada a ver com essa definição. ‘O político’, seguindo autores como Rancière1 e Badiou2, é aquele que de repente aparece numa situação como algo que sempre pertencia numa situação, mas nunca era incluído em termos de consideração, porque não era contado como tal, era excluído. Como por exemplo, as pessoas refugiadas que ficam ilegais num país, não são incluídas na contagem de cidadãos deste país. Mas como eles pertençam a essa situação (eles estão lá), no momento em que eles aparecem, o aparecimento deles exige que eles sejam incluídos, e isso força a situação: dividindo a situação existente entre as partes que incluem esse ‘novo’ elemento, e aqueles que não o incluem. Assim, mudando a situação.
Nessa perspectiva, o político é algo que sempre discorda com a situação existente, porque foi excluído disto, não foi contado, mesmo pertencendo a ela. No momento que esse elemento surge e exige ser incluído, ele mexe com a nossa percepção da situação e da realidade, e a transforma. Porque se faz necessário o espaço de inclusão daquele elemento na nossa percepção. A partir desse conceito de “político”, vemos uma diferenciação com o que chamamos de política.
A capoeira tem bastante intimidade com a política: seja com as políticas internas dos grupos ou entre grupos, seja com os seus procedimentos e relacionamentos no campo governamental: as políticas municipais, estaduais, nacionais e até internacionais, como por exemplo o reconhecimento pela ONU como patrimônio cultural imaterial da humanidade, ou as tentativas de regulamentação da capoeira pela lei em vários países. Nesse aspecto, a capoeira não é política (e na minha opinião nem deveria ser), mas interage com, e às vezes está sujeita à, ela.
No segundo conceito, “o político”, a capoeira é um “político” sim, ou pelo menos oferece espaço para ele aparecer: como manifestação popular e cultural, ela sempre deu palco e representou o marginalizado, o excluído, aquele/a que não foi contado, mas pertencia à sociedade. Hoje em dia ela ainda tem essa função como plataforma, como um lugar onde “o político”, o oprimido, pode se manifestar.
Eu acho, que é por esta razão, que hoje em dia existe uma simbiose entre movimentos como o movimento negro, feminista, ou da paz, e a capoeira. Porque ela, a capoeira, sempre foi e será uma manifestação do “político”, que no momento foco nesses movimentos.
Mas se ela é uma plataforma para “o político”, talvez seja a hora de a gente começar a pensar como se posicionar diante ela. Porque “o político” pode aparecer, mas para poder mudar algo, ele precisa de um sujeito: aquela/e que dá continuação naquilo que apareceu e que foi visto.
1 Ler por exemplo Rancière, J. (2010) Dissensus: On Politics and Aesthetics, transl. S. Corcoran, London, Continuum.
2 Ler por exemplo Badiou, A. (2005) Metapolitics, transl. J. Barker, London, Verso.
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