DISCOS DE OURO DA CAPOEIRA
“Não há dúvida: gostamos de ler porque através da leitura entramos em contato com nossos interesses profundos”.
OSWALDO COIMBRA – in “O que inibe o prazer de ler”, no DIÁRIO DO PARÁ, caderno VOCÊ, de 8/abril 2017
Não podemos “escurecer” a verdade: pelo menos entre os mais pobres ninguém gostava de ler no início dos anos 70, nem mesmo revistas. Se o assunto fosse Capoeira, nem revistas havia, que dirá livros… desde meados dos anos 60 circulava um “pequeno manual” com muitas figuras e quase nenhum texto, publicado pela “Edições de Ouro” cujo autor, Lamartine Pereira da Costa, era desconhecido no meio. O que se conhecia vinha de extensas obras baianas, ambas do mesmo período, 1965/68: breves biografias dos mestres antigos de Salvador, por Jorge Amado, em seu “Bahia de todos os Santos”, com desenhos raros de Carybé e o completíssimo “CAPOEIRA ANGOLA”, de Waldeloir Rego, marco insuperável.
Foi quando uma bela revista de amenidades juvenis chamada “POP” (abordando surf, skate, rock, moda, etc) passou a divulgar fotos de Capoeira com 1 jovem louro, modelo, que treinava com mestre “Camisinha” (depois “Camisa”) “no CÉU” – Casa do Estudante Universitário, no bairro do Flamengo e também no Clube Guanabara, em Botafogo. Timidamente, revistas de karatê e judô — como a “Artes Marciais” e a “CombatSport” — cediam página e meia para a Capoeira, a da Zona Sul carioca, pois da Zona Norte nada se sabia, nada se divulgava. Daí, cresceu o interesse por discos, quase sempre trazidos por alguém vindo lá de Salvador, lojas de discos e “sebos” do Rio nunca tinham.
O LP mais ouvido na época era o de mestre “Caiçara”, um certo “Academia São Jorge dos Irmãos Unidos de mestre Caiçara” (ou coisa parecida), com apito ridículo em algumas faixas. O de mestre Pastinha — com atabaque parecendo “caixa de papelão — poucos possuíam e do mais famoso, o de mestre Bimba, com livreto, só se ouvia falar. Eis que um dia… por um desses milagres do Destino surge o “Cordão de Ouro” vol. 1, de mestre Suassuna, definitivo, caprichado, inovador, surpreendente. Até na capa — uma tristeza nos LPs da época — há um toque de bom-gosto e expressividade, contrastando com os “rabiscos” dos demais LPs de Capoeira daquela década.
À revelia de meu irmão Renato, acrescento o disco de “Camafeu de Oxóssi”, essencialmente folclórico — embora com “meia banda” de Candomblé, tradição no período — à relação dos LPs que animaram casas e treinos dos “capoeiras” que precederam quase todos os atuais. Lá por 1978/80 o mercado estava “abarrotado” de discos e revistas, principalmente paulistas, com o programa “Malhação” da TV Globo dando espaço e atenção ao modelo (e Mestre) “Boneco” e, adiante, com Marcelo Farias. A editora EBAL — sempre na frente — publicaria uma revista inteira, com o Grupo SENZALA no Aterro do Flamengo, salvo engano no volume de estréia da “DÔ – revista de artes marciais”, com poster de todas as lutas.
Ainda dessa época 2 LPs interessantes e instigantes, os dos mestres “Limão e Limãozinho” e, na sequência, (1989?) “Natanael e Limão”. A título de curiosidade, um certo “Guimarães do Berimbau” e um LP de jongo e de Capoeira — com Júlio César Figueiró, o me. “Carioca” — inovaram o canto das ladainhas, abordando temas absolutamente incomuns, por volta de 1972.
E entramos nos anos 80, com os mestres “Acordeon” (e/ou “Jelon”, nos EUA) e “Lua”, depois “Lua Rasta” (em Berlim, com o disco “Favela”) registrando seu trabalho no Exterior, creio que os primeiros a fazê-lo. Impossível não citar o Grupo ZAMBO, em Salvador — de um certo Onias “Comenda” — eternizando no LP “Eu, Bahia” seu Candomblé quase como “canto gregoriano” e o mordaz Sílvio Acarajé, o “Santo Malandréu”, improvisando em quase (ou mais de) 20 TOQUES ignorados. Relação alguma estará completa se deixar de fora 2 LPs antigos que nem de Capoeira eram: gravados ao vivo no Teatro Castro Alves, os “VIVA BAHIA” 1 e 2 nortearam o canto de “chulas” em meio Brasil, sem nenhuma dúvida, nos primeiros anos dos 70. Aliás, entre 1967 e 74/75 vários artistas de renome — do cenário musical tupiniquim, nossa MPB — gravaram “chulas da Capoeira” ou canções que a homenageavam, mesmo sem o uso de berimbau. Até vivendo e atuando no exterior, nossos ídolos não esqueceram dessa “dança-luta”, da força inconteste de seus toques e ladainhas. Está na obra de W. Rego relação imensa que comprova isso !
Martinho da Vila, Jackson do Pandeiro, Geraldo Vandré, o soteropolitano “Batatinha”, Gil e Caetano — este, exilado em Londres — talvez Clara Nunes, Tom Jobim, Nara Leão, Bezerra da Silva num disco nordestino por excelência… Elis Regina, Baden Powell , Paulo César Pinheiro e o negro baiano (em 1972) ainda por ser “descoberto” ZÉ MARIA, gravando pela SOMA (depois, Som Livre) um LP histórico, pela força de sua mensagem e das melodias. Quer mais ?! Percussionistas como Djalma Corrêa e Papete, além de Airto Moreira e Hermeto Paschoal !
Mas, LPs eram caros… as vitrolas e eletrolas mais ainda ! O bom “capoeira” comprava fitas cassette, as “copiava” e repassava para amigos e conhecidos. Os minigravadores eram baratos e práticos, cabiam em qualquer bolsa. Nossos dias assistem a um “boom” espetacular de CDs de Capoeira, alguns Grupos — como a Muzenza e o Abadá — já possuem vários… os velhos mestres vêm sendo registrados ! Me surpreendi com a qualidade do conteúdo — mais do que da forma, coral “sonolento” a lhes acompanhar — dos mestres “Boca Rica” e “Bigodinho”, provas vivas de que êles entendiam (e muito!) de musicalização, de que aprenderam bem com o “cantochão” das Igrejas ao lado das quais a Roda existia.
A Capoeira ainda é FOLCLORE… resta saber até quando ! O canto em grupo, nesse caso, é A ALMA da “atividade física” (seja ela dança, jogo, luta, “brinquedo”) e não admite relaxamentos nem pouco interesse. Os Angoleiros, em seus CDs, vêm mantendo essa chama… canta-se com o coração, com emoção, ligado ao sentimento interior que sustenta e movimenta nosso amor pela Capoeira.
Relações de livros, jornais, revistas e de gravações de nossa Arte-Luta são essenciais, pois contam a história desse Folclore-“esporte”, talvez o único no Mundo com tanto material publicado, enquanto atividade de um povo, de uma Nação inteira. Quiz o Destino reunir num só tempo e lugar — isso vai dar o que falar ! — os 2 nomes mais proeminentes, mais DESTACADOS da Capoeira contemporânea… “traduzindo”, de 1978/80 até esse 2018. Contudo, os velhos Mestres baianos, vivos ou não, continuam como REFERÊNCIA… de um tempo que se foi !
José Tadeu Carneiro com os pés — por vezes um ou outro braço — e o “vagabundo confesso da Turma de 71” Nestor Passos representam o novo tempo dela em boa parte do Brasil e em trechos do Mundo. Juntos num filme que não deu certo, não se sabe por quê, o “Cordão de Ouro” de 1975/76, os mestres “Camisa” e Nestor “Capoeira” recriaram e moldaram — um com o corpo e o outro com a caneta (ou cabeça) — os destinos modernos da Capoeira universal, sem querer tirar os méritos de dezenas/centenas de outros Mestres nacionais, agindo e pensando da mesma forma.
Com seu “Pequeno Manual do JOGADOR de Capoeira” (1977?) nosso “Paulo Coelho do berimbau” — num calhamaço que de pequeno nada tem — dá o primeiro passo, o mais importante, para desestigmatizá-la, tirar-lhe a pecha de LUTA, “barulho”, confusão. Desnuda-a de suas vestes de “navalhista” ou “faquista”, dá-lhe porte, filosofia — suponho (!?) que dos velhos mestres — novo comportamento, outra direção. Ambos no (e do) Grupo SENZALA inicialmente, com “Camisa” abrindo frentes de expansão jamais imaginadas por outros mestres da época e conquistando espaços no Exterior.
As obras de Nestor “Capoeira” não são de fácil leitura, os praticantes continuam arredios a livros, mas alguém os consulta, pois seus escritos estão em quinta ou sexta edição. Em reportagens de 1987/89 meu irmão Renato “Leiteiro” — em Belém, prof. “Carioca” — reclamava da violência da prática e afirmava que “as regras terminam quando começa o jogo”… esse tempo findou, a Capoeira nacional pode até não estar inteiramente unida, mas o período SUICIDA de disputas e desavenças ficou no Passado… naquela “Capoeira pra matar / (…) na “dança da Morte” do lugar”, que Jair Rodrigues consagrou.
Agora é cantar E ENCANTAR em mais de 250 CDs –sambas à parte, que outro Folclore ou esporte tem tantos ?! — e sonhar que o tempo de ler E DE ESCREVER sobre Capoeira, seus Mestres e Grupos recomece. Axé, camaradas !
“NATO” AZEVEDO – em 25/26 fev. 2018
OBS: escrito à luz de velas, 180 DIAS “na escuridão… injustamente !
(adendo) DEPOIMENTO — prof. “CARIOCA”
Estranhamente, embora eu tivesse vários discos praticamente não os ouvia, pois quem deveria conhecer muitas músicas eram os condutores de Rodas. Assim, quando realmente ouvi muitas músicas foi aqui (em Belém) aonde fui conhecido como um dos “cabeças” das Rodas dominicais da Praça da República, além de visitar vários Grupos expressivos.
Aí cheguei a ter 40 fitas, sendo as que mais gostei foram: João Grande, J. Pequeno, Paulo do Anjos, Angoleiros do Sertão, me. “Fanho”, Deraldo, entre outros. Em 2017 tomei um susto… recebi indicações de CDs extremamente bonitos e importantíssimos para a Capoeira como: “Boca Rica e Bigodinho”, Rafael de Lemba, me. Angolinha, CD-álbum do me. Pernalonga, Lua Negra e o importante e envolvente mestre “Marrom”, num CD-álbum que mata a saudade de todos os que gostam das músicas antigas ! (RENATO P. AZEVEDO – prof. “Carioca”)
Aos interessados em pesquisar sugiro consultar: www.overmundo.com.br/download.
correntelibertadora.blogspot.
Escrito por: CINCINATO PALMAS AZEVEDO
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