MESTRE MOA DO KATENDÊ: UMA VITIMA DO EXTREMISMO
Texto: Jeferson do Nascimento Machado
Este texto, escrito em um momento de consternação, como não poderia deixar de ser, está carregado de emoções (o presente artigo foi elaborado para um compêndio intitulado Brasil Nunca Mais, organizado pela Frente Popular – São João do Triunfo). Tenho ciência disso. No entanto, o emergir da violência no país, que se desdobrou – entre outros tantos crimes políticos – no assassinato de mestre Moa do Katendê (Romualdo Rosário da Costa), aponta para uma necessidade de tomarmos posições frente ao que vem acontecendo, buscando equacionar os acontecimentos, numa perspectiva progressista, e apontar caminhos melhores que estes que os reacionários nos oferecem.
Assim sendo, busquei realizar uma reflexão a partir do crime brutal que vitimou Moa, de modo que possamos compreender a dimensão histórica e social do ocorrido. Para isso, me amparei em uma bibliografia criteriosamente selecionada acerca da capoeira, bem como em fontes variadas, como portais de notícia, fontes orais, jornais e revista (que estarão referenciadas junto com as bibliografias deste compêndio).
O assassinato de Moa repercutiu e continua a repercutir, sendo divulgado nos mais variados portais de notícias, nacionais e internacionais. Sua morte levou muitos capoeiristas, grupos culturais e políticos, bem como grande parte da sociedade civil organizada a realizarem uma série de eventos, atos e protestos contra o crime. Também aconteceram homenagens de vários artistas, como Caetano Veloso e Chico Cezar, que gravaram, cada qual, uma música em homenagem ao Mestre Moa. Roger Waters, ex-integrante da banda inglesa Pink Floyd, fez emocionante discurso sobre ele em show na Bahia. Além do mais, a sua morte levou algumas alas da periferia a se organizarem frente ao que se instala no país. Exemplo disso, está sendo a criação dos Comitês Mestre Moa do Katendê, por todas as periferia do país, iniciado pelo rapper G.O.G (Genival Oliveira Gonçalves). Toda esta rede de ações pragmáticas e discursiva, criadas em volta de Moa, parece apontar que a sua morte, longe de ser algo isolado e distante, está totalmente enraizada ao social, catalisando sentimentos e produzindo ações. A dimensão social do ocorrido ultrapassa o próprio evento – junta-se a outros tantos crimes, de hoje e de ontem, cometidos contra o negro, contra os trabalhadores e todas as minorias em poder – e produz redes de consciências que podem despertar as classes menos favorecidas.
Dito isso, vamos adentrar na biografia deste mestre. Romualdo Rosário da Costa, o Mestre Moa, foi um dos grandes mestres de capoeira e divulgador da nossa cultura popular. Ele nasceu em Salvador (BA) no dia 29 de outubro de 1954 e conheceu suas raízes aos oito anos, aprendendo os primeiros movimentos de capoeira. Com seus 16 anos Moa começou a trabalhar em grupos folclóricos como o “Viva Bahia” e o “Katendê”. Foi uma pessoa essencial para a difusão da cultura afro-brasileira pelo sul do país, sendo responsável pela introdução da dança afro no Rio Grande do Sul.
Em 1985 Mestre Bobó formou Mestre Moa do Katendê, que deste então passou a ensinar a capoeira no Espaço Clube de Regatas Vasco da Gama. Mas ainda antes dele ter sido formado mestre, ele já tinha construído uma grande carreira no campo cultural. Assim foi que no ano de 1977 ele veio a ser campeão do Festival de Canção Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Brasil. E em 1978 a fundar o Afoxé Badauê, que veio a ser campeão do desfile de 1979, na categoria de afoxé. Em sua vida ele foi compositor, dançarino, ogã-percussionista, artesão, educador e capoeirista.
Sobre a capoeira, Moa costumava dizer que ela abriu sua mente “para o entendimento de liberdade, de irmandade, de companheirismo, de respeito ao próximo, de respeito ao mundo, respeito à natureza, principalmente”. Em suma, a capoeira fez ele ter um olhar à esquerda sobre social e sobre a própria natureza. E foi este olhar que fez dele um constante guerreiro na luta contra a opressão, inclusive aquela da Ditadura Militar (1964-1985). Os militares daquela época chegaram a lançar bombas em um de seus ensaios, no Bonfim.
Este atentado contra Moa e seus outros colegas de ensaio, revela a parte de uma perseguição antiga, histórica, da burguesia brasileira sobre o negro, sobre o capoeira, sobre o trabalhador. Porém, mesmo com a perseguição, Moa nunca parou de lutar, prosseguiu engajado nas lutas sociais até o dia 7 de outubro, quando foi violentamente assassinato.
A perseguição a capoeira esteve assentada, ao longo de sua história, na luta de classe. E essa perseguição foi constante, os poderosos não descansaram um só dia no intuito de eliminar a capoeira. E quando notavam que era impossível, tentavam domesticá-la (ainda tentam até hoje). No entanto, ela sobreviveu a escravidão, a Ditadura e continua atuante nas periferias, nos becos, nas vielas e cortiços.
A origem da capoeira é carregada de polêmica, dividindo capoeiristas e intelectuais, que cada qual, a seu modo, busca dar uma versão sobre seu surgimento. Todavia, no âmbito historiográfico, foi Eugênio Soares que deu a melhor versão para o estado embrionário da capoeira. Para ele a capoeira foi uma prática urbana, exercida por escravos (sobretudo os de escravos de ganho) que, no todo, constituíam-se de homens, jovens e da África Centro-Ocidental. Muitos outros intelectuais concordam com Soares de que a capoeira tenha sido criada no Brasil, pelos africanos. Dessa forma, a capoeira é uma prática afro-brasileira, ou seja, ela foi criada no Brasil por africanos escravizados e se desenvolve sob influência de todo o caldo cultural do século XIX e XX.
João da Matta, que é psicanalista e usa da capoeira como ferramenta terapêutica, entende que a capoeira surgiu como resposta contra o colonizador europeu, servindo como instrumento de luta contra a escravidão e a repressão policial. E foi assim que ela veio se construindo ao longo da história, formando laços de companheirismo entre a classe oprimida.
No entanto, mesmo sendo fato que a capoeira foi criada por trabalhadores escravizados, a burguesia sempre buscou chamar ela de uma prática de vadios, desocupados. Se olharmos para os jornais antigos da Bahia, por exemplo, nos depararemos com os ritos de carregar peso – que eram realizados pelos trabalhadores de rua – conviviam com a capoeira, sendo que o cancioneiro da capoeira bebeu nos cantos do trabalhador de rua e estes se utilizava da capoeira em momentos conflituosos ou lúdicos. No geral as fontes revelam que os capoeiras, mesmo depois da escravidão, continuavam a exercer as profissões antigas mostrando certa continuidade de posição, desta forma eles continuaram a viver de ocupações esporádicas e intermitentes: estivadores, carroceiros, peixeiros, engraxates, pedreiros, chapeleiros, etc.
E foi o fato da capoeira ser uma prática cultura da classe trabalhadora que fomentou, desde muito cedo, o engajamento desta prática com as alas mais progressista da sociedade. Afinal, trabalhadores e grupos de trabalhadores, são impelidos pela dinâmica da própria luta de classe, que se assenta no modo de produção capitalista, para organizações que expressem seus anseios e ofereçam chaves interpretativas da realidade, para que assim suas ações se aperfeiçoem.
Assim sendo, aqui damos atenção para os partidos e organizações políticas, na percepção de que elas expressam as classes e frações de classes e que, portanto, também atraem os trabalhadores, bem como os organiza e é organizada por eles. Este engajamento da capoeira a partidos, pode ser encontrado ainda no século XIX, embora naquele momento a consciência dos capoeiristas, assim como da própria elite, estivesse totalmente fora do lugar. Esta deturpação da realidade, nascia pela tentativa da elite em reproduzir o mundo europeu dentro da realidade brasileira, que era totalmente diversa daquela. Esta deturpação da elite afetava a própria ação dos trabalhadores, que naquele momento ainda se encontravam na condição de escravos. Esta deturpação produzia partidos fora do lugar, como o Partido Conservador e Partido Liberal, nos quais muitos capoeiristas se reuniam em maltas, onde lutavam. Os Nagôas, que eram africanos ou descendente vindos da Bahia, ocupavam a Pequena Africa, apelido dado aos arredores da Praça XI, um dos limite do Rio de Janeiro. Eles declaravam apoio a monarquia, que era representado pelo Partido Conservador e identificado com o movimento abolicionista. Os Gaiamuns já eram uma malta que se identificava com os mestiços. Eles ocupavam o centro da cidade e estavam aliados ao Partido Liberal, que tinha identidade com ideais republicanos.
Passado o século XIX, os capoeiristas passaram a se organizar junto alas de maior clareza, e de caráter realmente progressista. E isso já pode ser visto em Mestre Pastinha, que durante toda sua vida, foi próximo dos membro e militantes do Partido Comunista, chegando a ter como amigo pessoal, o comunista Jorge Amado, escritor que dedicou bastante à divulgação da capoeira, a partir da literatura, sobretudo da capoeira Angola. Pastinha chegou mesmo a dar aulas no Centro Operário, o que o aproximou ainda mais dessa ala progressista. Além disso, também foi próximo dos anarquistas, que se expressa em sua aproximação com Roberto Freire, que mais tarde criaria a Somaterapia, que tratava-se da união da psicanálise desenvolvida por Wilhelm Reich, do anarquismo e da capoeira angola.
Em momentos conturbados, como foi o caso da Ditadura Civil-Militar(1964-1985), a capoeira se fez presente na luta e houve constante perseguição aos capoeiristas que se recusaram a seguir as normas impostas. O Grão Mestre Dunga, praticante da Capoeira de Rua, chegou a ser preso por estar tocando berimbau na Praça Sete, em Belo Horizonte. Ele narra que “a capoeira de rua sofreu repressão e perseguição, considerada como atividade subversiva pelo governo militar” e que ele “foi recrutado pelo exército, na década de 70, quando resistia e alimentava, às escondidas, os universitários presos durante as manifestações estudantis”.
Também Mestre Djalmir, em depoimento a Identidade Cultura TV narra a sua experiência durante a época da repressão em São Gonçalo, dizendo que “[…] era uma época forte da repressão da Ditadura, que não queria aceitar o capoeirista […] então fui obrigado a correr muito. Aquela época se você tive jogando a capoeira num determinado lugar, todo mundo nem perto queria passar […] olhava com medo e se por acaso algum militar chegasse, ai a gente tinha que correr […]. Mestre Djalmir chegou a ser preso duas vezes por causa de capoeirista.
Outros capoeiristas, como o Mestre Arraia, considerado precursor da capoeira em Brasília, foi atuante junto aos movimentos contrários a Ditadura Militar. Entre esses capoeiristas que lutaram contra o regime, ainda poderíamos citar o jovem capoeiristas e estudante de direito, Caio Venancio Martins, que foi integrante do Movimento Estudantil da USP e que foi considerado perigoso em documento do DOPS por praticar capoeira, sendo preso e sumido pelos militares. Devemos lembrar que o próprio Carlos Marighela foi capoeiristas, chegando a utilizar da capoeira para resistir a uma prisão.
Além disso, vale notar que o ativismo não se limitou aos sujeitos isolados, mas também se manifestou em grupos e associações de capoeira, como foi o caso da Associação Cultural Corrente Libertadora, que estabeleceu fortes diálogos como movimento sociais, tornando-se ferramenta de intervenção política no período da Ditadura Militar, tendo dado a sua contribuição para a criação do PT (Partidos dos Trabalhadores). Assim sendo, a capoeira criou uma relação histórica com esse partido progressista, tendo fortalecido a relação quando a capoeira foi reconhecida pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 20 de novembro de 2008, como Patrimônio Nacional e como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, em 26 de novembro de 2014.
Outro grupo importante nessa resistência, foi o grupo de mestre Anande das Areias. Este mestre foi para São Paulo após treinar em Itabuna, como o jovem Luís Medicina, a pedido de Mestre Suassuna, que era líder do grupo. Ali se estabeleceu e passou a dar aulas. Suas aulas começaram a chamar atenção, sobretudo dos estudantes universitários. Areias veio a ser preso por essa relação com os universitários da época, que estavam engajado na luta contra a ditadura. Na prisão foi que ele teve contato com os intelectuais de esquerda, os quais transmitiram seus conhecimento. Quando Areias saiu da prisão, ele rompeu com seu antigo mestre e fundou o grupo Capitães d’Areia, que se propunha trabalhar a capoeira enquanto instrumento de libertação para os grupos oprimidos.
Desta forma, podemos dizer que a capoeira, construída na arena da luta de classe, acumulou experiências que foram sendo transmitidas pela tradição oral e pela estética das rodas de capoeira, sendo assim interiorizada pelos capoeiristas, funcionando como esquemas mentais de classificação e ação diante a sociedade com que se defrontam. E foi isso que levou a muitos capoeiristas a terem uma posição clara quanto o Golpe de 2016, vindo a participarem de vários atos contra o Michel Temer e a retirada da então presidenta Dilma Rousseff, que podem ser encontradas nos mais variados portais de notícias.
Em continuidade e coerência com o caráter emancipatório da capoeira, também Mestre Moa do Katendê se posicionou à esquerda, neste momento conturbado da história. Este posicionamento acarretou em sua morte, porém ele morreu enquanto individuo, mas sobrevive enquanto classe emancipadora.
Este crime soma-se a outros, como o feminicídio da vereadora Marielle Franco, que até o momento ainda não foi resolvido; ao atentado a caravana do ex-presidente Lula, aos ataques ao acampamento situados nas proximidades da Policia Federal, local onde se encontra o ex-presidente; além de tantos outros caso de violências. Dessa forma, notamos que o assassinato de Moa se insere num quadro de violência, que vem sendo orquestrado pela ala reacionária da sociedade, que aproveita-se de um momento de crise para encarnar sua ideologia no social, produzindo verdadeira milícias.
Assim sendo, estes acontecimentos expressam parte da luta de classes atual. A esquerda tem escolhido o caminho do pacifismo, da não agressão. Enquanto isso, a extrema direita escolheu o caminho radical. E cada dia ela aumenta o grau de violência, sistematiza e amplia seu poderio sobre as massas.
Visto isso, antes de encerrarmos este texto, voltemos a Itália do dia 16 de maio de 1924, momento em que o deputado Gramsci faz um discurso histórico contra Mussolini. Nessa época Mussolini já estava ocupando o cargo do Conselho de Ministros e resolveu encaminhar ao parlamento italiano o projeto de lei para “disciplinar a atividade das associações e institutos”, ou seja “acabar com os ativismos”. Gramsci, que era deputado, se opôs totalmente ao projeto, desmascarando a lei, demonstrando que era antidemocrática e que o fascismo buscava a implantar uma ditadura naquele país. Mussolini ficou profundamente irritado e rebateu, definindo o fascismo como “revolução”.
Porém, “Gramsci retrucou dizendo que o fascismo não era uma revolução, mas uma ‘simples substituição de um pessoal administrativo por outro. Só é revolução – acentuou – aquela que se baseia em uma nova classe; o fascismo não se baseia em nenhuma classe que já não esteja no poder’. Mussolini voltou à carga, procurando descaracterizar o conteúdo de classe do fascismo e protestando: ‘Grande parte dos capitalistas está contra nós!’. O deputado oposicionista não se perturbou, e observou que o fascismo só entrava em choque agudo com os outros partidos e organizações da burguesia […] porque queria estabelecer o monopólio da representação da classe. A atitude do fascismo com relação aos demais partidos burgueses era simples: “’primeiro lhes quebra as pernas e, depois, faz o acordo com eles em condições de evidente superioridade’. Mussolini não gostou da referência à violência dos fascistas, retrucando que esta violência equivalia a dos comunistas. Gramsci lhe respondeu: ‘A vossa violência é sistemática e é sistematicamente arbitrária, porque vós representais uma minoria destinada a desaparecer’”.
E assim como na Itália daquela época, estamos hoje no Brasil. Algo semelhante ao fascismo surgiu nas nossas terras tropicais e, da mesma forma que lá, cada dia que passa, torna-se mais violenta, sistematiza-se e se instala no âmbito social. O Brasil se encontra em uma grande encruzilhada, que não sabemos para onde vai. Por isso, esperamos que este conjunto de crimes políticos, sirvam de alerta para um perigo que se avizinha, no qual qualquer um de nós pode vir a ser vítima.
Mestre Moa, presente!
Texto: Jeferson do Nascimento Machado
email: [email protected]
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