potencialidades e desafios de uma vida de dedicação exclusiva…
O “CAPOEIRA 100%”
Hoje em dia escuto muita gente falando sobre ter que ser “capoeira 100%”… Observem, até eu já falei muitas vezes isso, querendo fazer a defesa de que o capoeirista deve dar exclusividade a capoeira, conectando todos os campos da sua vida à esta arte. Porém, hoje me pergunto quais os desafios e potencialidades desta escolha? Trataremos neste texto sobre estas inquietações que, com certeza, são perguntas que nos fazemos ao longo da vida.
Na vida, muito do que desejamos depende de alguns fatores e competências para ser erguido, materializado… Entrega, planejamento, disciplina, “terreno fértil”, são alguns elementos que reunidos alicerçam o progresso humano em qualquer área da vida. Com a capoeira não seria diferente. Para se estruturar uma vida próspera na capoeira, seja ela profissional, técnica e/ou filosoficamente, é preciso dedicar-se a compreendê-la, apreendendo seus conceitos, fundamentos, rituais, bem como suas relações com os diversos campos da vida humana (ciências sociais, humanas, saúde, exatas e suas aplicações).
Neste caminho, o capoeira que tem este desejo, passa a estabelecer uma busca de “ver, sentir, apreciar” a capoeira em tudo ao seu redor. Passa a correlacioná-la, por exemplo: – em sua vida profissional e financeira: ministrando aulas, cursos e palestras, produzindo e fazendo shows, confeccionando e vendendo instrumentos, administrando associações/centros de treinamento, escrevendo livros, realizando eventos, produzindo canais de informações na internet…; – em sua vida afetiva e familiar: se relacionando com um outro(a) capoeira ou envolvendo seu/sua companheiro(a) na lida com esta arte, relacionando o cotidiano familiar com a capoeira, tendo filhos/as capoeiristas…; – em seus momentos de lazer, de estudo, de religiosidade… Tudo passa a girar em torno da capoeira…
Quanta riqueza de relações estabelecidas, hein?!! Uma teia de entrelaçamentos que nos fortalece enquanto capoeiras, importante, sobretudo, quando vivemos em uma sociedade que ainda não valoriza nossa capoeira, sem reconhecer seu alto poder educativo, inclusivo, socializador e emancipatório. Porém, é preciso refletir sobre um outro lado…
Nesta defesa do “capoeira 100%”, acima desenhado, sempre me intrigou a crítica/auto-crítica ferrenha feita ao “capoeira vivido”, que sempre experimentou outras experiências fora da capoeira, ambientes outros que carregavam tamanha riqueza dentro da formação humana no campo das artes, cultura, turismo, relações humanas, psicologia, tais como: ir ao teatro, à shows, visitar diferentes lugares como paraísos tropicais, cidades históricas, conhecer culturas diferentes, cozinhar e comer comidas saborosas em lugares especiais, educar e curtir os filhos em espaços de lazer/estudo/ócio, dialogar com outras culturas populares, fazer um esporte diferente ou terapias alternativas, dançar, olhar o mundo por uma outra ótica que não a apresentada pela cultura da capoeira. Tudo isso também é enriquecedor, inclusive aporta ao cotidiano de um capoeirista, a maturidade para reconhecer a riqueza da capoeira e da vida.
Tenho visto muitos críticos que dizem: -Ela/ele não é “100% capoeira”, mas o que de fato seria bom pro capoeira e para a arte capoeira?
Lembremos que, mesmo focando a discussão presente no âmbito da arte capoeira, não podemos ser ingênuos de pensar que a resposta está, exclusivamente, na capoeiragem em si, visto que qualquer prática humana sofre a influência de seu tempo histórico e seus desafios de leitura da realidade. Neste sentido, é necessário refletir que a lógica de conhecimento multifacetado e centralizado na capacidade humana é um reflexo do pensamento renascentista em contraponto a Idade Média, que tinha Deus como centro de todas as coisas, ou seja, o que apresentamos aqui não é um conflito existencial novo, nem tão pouco exclusivo da comunidade de capoeira.
Na perspectiva renascentista o formato de ser humano perfeito era aquele que conhecia todas as artes e todas as ciências, ou seja, multifacetado. Leonardo da Vinci foi o grande exemplo deste ideal, pois dominava várias ciências e artes plásticas, não estando vinculado, especificamente, a uma só área de conhecimento. Assim, fica fácil perceber que nossas inquietações sobre os defensores da “exclusividade” em capoeira, em linhas gerais e de forma análoga, pode representar um retorno ao pensamento restritivo e castrador da idade média.
O capoeira antes de tudo é um ser humano, ser social, quanto mais souber, mais aplicará com maestria em nossa arte, portanto convido aqui a pensarmos que extremos são perigosos, e anunciam inseguranças. Quem sabe o “capoeira 100%” no sentido da dedicação exclusiva, não perca neste foco único e fechado, tantas compreensões análogas que enriquecem sua lida cotidiana? Passa a ser limitado, rígido, por não conhecer outras leituras, linguagens… A maioria dos momentos que vivi na vida, me aportaram a variedade de olhares que trouxe para interpretar a minha capoeira, enfim… Não é “traição” – conforme falam, o capoeira experimentar outras “cenas”… “Traição” talvez seja manter-se alijado de experiências múltiplas vividas, ofertando à capoeira um pensamento sempre atrasado e monolítico de interpretação das coisas e das pessoas, na dinâmica das relações humanas em comunidade.
Finalizo afirmando que a postura mais “arriscosa” para a capoeira, talvez não esteja nem no “capoeira vivido”, nem no “capoeira 100%”, esteja mesmo no “capoeira baratino”, descompromissado, aquele que vive de tudo menos a capoeira com a profundidade necessária, mas, mesmo assim tenta a todo custo reinvidicar as benesses do reconhecimento público capoeirano sem ter “farinha no saco”…
Enfim… SE LIGUE!!!!! Na real, como falamos no início do texto, meu camarada “na vida só quem planta, colhe!”, pois “a pedra de tropeço é o impulso para o avanço!”, ou seja, sem as experiências da VIDA, sua capoeira MORRE!
Por: Mestra Brisa e Mestre Jean Pangoli
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