Violência e Capoeira – Parte 3
A última coluna que escrevi (Parte 2) provocou algumas reações e debates sobre o tema violência e capoeira. Felizmente. Porque esta série de colunas chamada “Contemplações” é para refletir, reagir, e para fazer agir. No fim de uma conversa, resolvi então abrir este espaço para uma conhecida colega minha, sobre o tema da violência de gênero, especificamente a violência contra a mulher na capoeira. Porque como na capoeira não há ninguém que sabe de tudo, na vida também não tem. E Christine Nicole Zonzon – além de ser mulher na capoeira, que neste assunto faz uma diferença importante – vem desenvolvendo há anos pesquisas, no âmbito da Universidade UFBA, sobre o assunto. Como ela então tem mais experiência nesta área, e uma voz própria, a palavra agora é dela:
Violência na capoeira?
Seguindo com o tema da violência na capoeira, tratado nos dois últimos Posts por Filósofo, proponho refletir sobre o tema da violência de gênero, questão que começou a ser discutida em nossos grupos e encontros de capoeira no Brasil e algures. O debate sobre a violência contra a mulher poderá esclarecer alguns aspectos mais gerais da violência na capoeira, já que, como Filósofo justamente afirma, a violência está sempre relacionada ao contexto e ao objeto.
Pelo fato de a capoeira ser uma tradição sem regras explícitas e definitivas, identificar a violência pode ser um exercício difícil. No fim das contas, a própria malícia da capoeira borra as fronteiras entre o “faz de conta” e o real, a brincadeira e a agressão. Mas a violência pode ser percebida por quem sofre seus efeitos, como me disse certa vez uma capoeirista que teve o braço fraturado na roda: “Eu sei muito bem o que é capoeira e o que é violência”. Assim, mesmo ambivalente, a violência na/da capoeira, se torna problemática (e é, portanto, problematizada) quando deixa de ser naturalizada, passando então a ser questionada. Um pouco ao exemplo dos castigos corporais outrora infligidos às crianças na família e na escola…
Mas quais são as formas da violência contra a mulher na capoeira? Recentemente, circulou na Internet um vídeo que ilustra bem duas formas em que a violência se dirige à mulher na roda de capoeira: a violência física e a violência simbólica. A primeira, a violência física é visível em dois tempos: 1. o homem suspende a mulher em meio ao jogo e beija a sua bunda (violência física de caráter sexual)…ela revida; 2. Ele aplica uma chapa no peito da parceira rebelde (violência física propriamente dita). A violência simbólica, por sua vez, se expressa no fato de que a roda continua como se nada tivesse acontecido. A violência é invisível, naturalizada, pois todos aceitam implicitamente que a mulher, antes de ser parceira de jogo, é um objeto sexual para o homem. Isso não significa que os homens e mulheres presentes concordem ideologicamente com essa agressão, mas que não pensam a respeito, não percebem o ato como sendo violência. O conceito de violência simbólica criado por Pierre Bourdieu[1] significa que dentro de uma relação de dominação, o dominado aceita e normaliza a violência sofrida porque incorporou as regras do dominante.
As reações a esse vídeo compartilhado milhares de vez foram virais, e muitas (e muitos) identificaram a violência e a condenaram, afirmando que se tratava de um acontecimento lamentável, porém isolado e peculiar… Ora, as pesquisas empíricas no campo da capoeira mostram que não se trata de um caso excepcional. Além da experiência própria enquanto mulher e capoeirista, convivendo nesse campo desde 1989, duas pesquisas que desenvolvi nesses últimos anos[2] evidenciaram o caráter estrutural da violência de gênero no mundo da capoeira. Através de entrevistas, da análise de debates nas redes sociais, da organização de seminários e discussões sobre esse tema, criou-se um espaço seguro para que as mulheres capoeiristas relatem suas experiências. Também observamos durante meses as interações nas rodas e no cotidiano de grupos de capoeira e garimpamos uma bibliografia (nunca citada nos estudos sobre capoeira!) comportando uma dúzia de estudos sobre gênero e capoeira escritos por pesquisadoras/capoeiristas[3]. Descobrimos que a dinâmica da violência sexual, física e simbólica é corriqueira em diversos grupos e estilos de capoeira no Brasil e no exterior. Entre outras figuras da violência sexista relatadas, vale destacar que o jogo de capoeira inclui novas figuras quando a interação se dá com uma mulher. Inúmeras capoeiristas são carregadas no colo no final do jogo ou jogadas no colo de homens sentados na roda, são beijadas, ridicularizadas. Viu-se até um de “nossos grandes mestres” simular uma sodomização quando sua adversária abriu uma tesoura!
Outra expressão da violência simbólica sofrida pelas mulheres na capoeira é a sua exclusão dos lugares de poder/saber: poucas mestras, poucas mulheres comandando a roda e tocando o berimbau, treino diferenciado menos desafiador por considerar que as mulheres não têm força ou habilidade semelhante aos homens, homens se recusando a jogar com mulheres na roda, entre outras…Essas violências têm sido naturalizadas até um tempo muito recente, ou na verdade, até hoje em muitos coletivos de capoeira. São violências justificadas pelo argumento que as mulheres são mais frágeis, não se esforçam o suficiente, não desenvolveram ainda as competências etc… Mas são essas mesmas mulheres tidas por incompetentes que brilham na roda, na bateria, nas discussões nos eventos organizados por e para elas!
A violência de gênero, na capoeira, pode ser associada à herança dos tempos da malandragem, dos bambas, da rua, da marginalidade. Mundo dos homens por excelência em que valores testemunhando da masculinidade como a força e a valentia não só eram necessários para a sobrevivência como acabaram instituindo uma hierarquia, um ethos. Mas lembremos também que a capoeira moderna, como surge a partir das iniciativas de Mestres como Bimba e Pastinha, buscou romper com alguns aspectos dessa cultura marginalizada, para enfatizar a educação, a poesia, a beleza, a mística da capoeira. Lembremos também que mulheres estão praticando capoeira, cuidando da capoeira, trabalhando em prol da capoeira há pelo menos 40 anos!
É hora, é hora! De repensar a violência contra quem é menos homem: a mulher, o “viado”, o “gringo”, o fraquinho… Capoeira é luta pela liberdade!
[1] Segundo Bourdieu, a raiz da violência simbólica estaria presente nos habitus culturais, especialmente no reconhecimento tácito da autoridade exercida por certas pessoas e grupos de pessoas, isto é, no respeito que “naturalmente” vincula os dominados aos dominantes. Ver: BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007 e A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007
[2] A primeira, realizada no âmbito do Doutorado, foi publicada pela Edufba em 2017 sob o título Nas rodas da Capoeira e da Vida: Corpo, Experiência e Tradição. A segunda (Experiências e Representações de Mulheres Capoeiristas) realizada com equipe de pesquisadores da UFBA, está ainda em andamento. Incluiu notadamente a organização de um Seminário (julho de 2017) reunindo uma grande diversidade de mulheres capoeiristas em Salvador em torno da temática da Invisibilidade da mulher na Capoeira.
[3] Entre outros estudos publicados, recomendo “COMO SI FUERAN HOMBRES”:los arquetipos masculinos y la presencia femenina en los grupos de capoeira de Madrid de Menara Lube Guizardi, Revista de Antropología Experimental, nº 11, 2011. Texto 21: 299-315.e TEM MULHER NA RODA? PERSPECTIVAS FEMINISTAS SOBRE RELAÇÕES DE GÊNERO E FEMINILIDADE NA CAPOEIRA de Paula Natanny Rocha Bezerra (Fazendo Gênero 10, 2013)
Foto principal: Arte de Lara Robatto. Logo marca do coletivo feminista de capoeira angola.
Christine Nicole Zonzon é capoeirista e pesquisadora interessada mais particularmente nas temáticas do corpo e da cultura, com foco na capoeira. Atualmente realiza um pós-doutorado no Programa de Pós Graduação em CIências Sociais da Universidade Federal da Bahia, desenvolvendo um projeto sobre as experiências das mulheres capoeiristas. É autora do livro Nas rodas da capoeira e da vida: Corpo, Experiência e Tradição (Edufba, 2017).
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